Pedro Santos - Krishnanda (1968)

Bar Songz
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Música na escalada da vida: a incrível história do disco que uniu a MPB à macrobiótica, filosofia indiana, climas selvagens e sons da natureza e, 42 anos depois de lançado, ressurge como cult entre músicos como Seu Jorge, Kassin e Mariana Aydar.
 
De onde viemos e o que ainda somos na escala da vida? A capa do LP Krishnanda, lançado em 1968 pelo percussionista e compositor Pedro Santos, tenta escalonar. Em uma colagem circular, espécie de mapa evolutivo, aparecem minérios, amebas, flores aquáticas, moluscos, peixes, anfíbios, larvas, insetos, aves e feras ao redor de um grande gorila e um pequeno homo ancestral. Nas pontas, as mãos de Deus e do primeiro homem, detalhe recortado de A criação de Adão, de Michelangelo, talvez simbolizando toda a vida que surge entre aquele quase toque.
 
Não é uma capa comum, como nada no disco em si e em seu autor. Pedro Santos, também conhecido pelo nome do principal ritmo que inventou, Sorongo, era especial. Além de músico inventivo e grande ritmista que tocou com Orquestra Tabajara, Maria Bethânia, Baden Powell, Clara Nunes, Jards Macalé e tantos outros, Sorongo era altamente espiritualizado. Presente neste mundo entre 1919 e 1993, expressava grandes pensamentos através de músicas, letras, escritos, desenhos, conversas. Comumente lembrado como filósofo por muitos que com ele conviveram, Pedro Santos criou obras muito além de qualquer escala evolutiva da música brasileira.
 
"Surgir é surgir, multiplicar é florir" 
Hoje, quase 20 anos depois de sua partida e mais de 40 da gravação de Krishnanda, seu pensamento musical e espiritual encontra ressonância renovada. O produtor Kassin, que lembra ter descoberto o disco em meados dos anos 1990, comenta: “Pedro é um símbolo do experimentalismo brasileiro, um revolucionário. Acho quase inacreditável que ele tenha conseguido realizar esse disco”. A cantora Mariana Aydar, que costumava abrir seus shows interpretando “Um só”, de Pedro Santos, conta que fica sempre emocionada com a música de Sorongo. “É de uma profundidade ímpar, me leva a lugares muito nobres, onde poucas músicas conseguem chegar”, explica. “Uma mistura de plenitude e medo.” Pupillo, baterista da Nação Zumbi e do grupo Almaz, recorda ter ouvido Krishnanda pela primeira vez em um ensaio. “Foi um divisor de águas pra mim, pois Pedro Santos mostra nesse disco que um grande ritmista, além de pesquisar novos timbres e texturas, pode criar melodias maravilhosas e mexer com palavras que complementam os temas com maestria.” Foi dele a ideia de incluir “Água viva” no repertório do show do projeto Seu Jorge & Almaz, com o qual fez duas turnês pelos Estados Unidos e pela Europa.
 
Em seu álbum de estreia, de 2011, a big band paulista Bixiga 70 regravou “Desengano da vista”, de Sorongo. “O Pedro Santos tinha a capacidade de compor um tipo de canção que tem a ver com a poesia oriental, ideograma”, diz Mauricio Fleury, pianista do conjunto. “As canções parecem mandalas, que, quando você olha de todos os lados, é como se estivessem pra cima. Como fractais ou aquela famosa representação do yin-yang, uma geometria perfeita.” Tamanho tem sido o séquito de fãs (que inclui outros garimpeiros musicais, como Ed Motta e DJ Nuts) que o selo Polysom está relançando o disco em vinil de 180 gramas com remasterização a partir das fitas originais. A gravadora Sony BMG também promete relançar o álbum em CD.
 
"Você é você pra onde for" 
Talvez a história do Krishnanda remonte a 1945, quando Pedro Santos retornou da Segunda Guerra Mundial – pandeirista na adolescência, durante o serviço na Itália Pedro continuou ligado à música, integrando a banda dos pracinhas. “Ele voltou emocionalmente abalado”, contou sua viúva Sylvia. No Rio de Janeiro, entendeu que a música era definitivamente o seu caminho. Trabalhando como porteiro de rádio, passou a conhecer importantes figuras e a elas mostrar seu toque e suas composições. Pela década de 1950, viu suas primeiras canções gravadas por gente como Mário Mascarenhas, Orlando Silveira e Michel Daud. Em pouco tempo, já estava acompanhando ídolos como Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e a principal formação instrumental de seu tempo, a Orquestra Tabajara.
 
No início dos anos 1960, Sorongo era não apenas um músico reconhecido por sua criatividade como emprestava seu nome para um novo ritmo, “uma variação do samba, que por sua vez é oriundo do batuque”, segundo o Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo. Elza Soares, Angela Maria e Baden Powell foram alguns intérpretes da nova levada. No disco Tanganyka, de Altamiro Carrilho, as invencionices de Pedro Santos foram tantas que o flautista requisitou um crédito à parte para o percussionista: efeitos especiais.
 
“Ele usava os instrumentos de um modo muito único”, recorda o violonista Sebastião Tapajós, que em 1972 gravou dois álbuns em dupla ao lado de Sorongo. “Ele era empírico, não tinha uma educação formal, mas sabia tudo de contar as entradas que tinha que fazer, os compassos etc. Botava o tamborim entre as pernas, pegava o reco-reco e botava no dedão, tirava sons que você não imagina. O pessoal ficava alucinado.” Além do domínio dos ritmos e da sonoplastia, Sorongo dedicava-se a criar seus próprios instrumentos, como o bambussom e o sorongaio – que juntava em uma estrutura tambores com diferentes timbres, ideal para a execução de seu ritmo inventado. Bambus, chocalhos de água, berimbaus de boca, colheres, tubos de desodorantes, cocos e apitos plásticos também faziam parte de seu set, assim como caixas de fósforo, ganzás, tamborins, cuícas, tumbadoras, tambores, agogôs, pandeiros, bongôs e maracas.
 
“Pedro Sorongo, que ser humano!”, lembra Bebeto Castilho, baixista e flautista do Tamba Trio. “Ele parecia que brilhava, com um jeito calmo de falar. Sempre chegava e apaziguava. Se tivesse alguém nervoso, esse alguém iria ficar calmo com suas frases curtas e sempre sábias.” Musicalidade sem limites, filosofias próprias, aura zen, homem de pensamento livre e qualidade únicas. “Diferente, sabe?”, diz Tapajós. “Diferente na música e na vida. Mas o lado espiritual sempre veio na frente.”


"Eu sou de uma porção que nem pó"
Em entrevista ao Correio da Manhã de 1968, Santos dizia: “O círculo da vida impõe ao homem renovação, começando sempre em cada geração que surge, para melhor ressurgir nas gerações que vêm, obrigando a humanidade a encetar o caminho que sempre foi, mostrando a todos que todos são apenas um”. Sua revolução pessoal foi movida pela descoberta da ioga, da macrobiótica, do aprofundamento da filosofia indiana. Largou o emprego de músico fixo na TV e passou a manufaturar baquetas e bolsas para instrumentos. A convite do produtor Hélcio Milito, ao longo de duas semanas em 1968, canalizou toda sua musicalidade e espiritualidade para, em duas semanas registrar, em três canais, sua obra-prima, Krishnanda.
 
Envolvendo as letras existencialistas, a paisagem é de climas amorosos e selvagens, sons misteriosos de um Brasil pré-sintetizadores, infinidade de brinquedos percussivos, marimbas, a voz rouca de Santos acompanhada de coros femininos e ocasionais cordas, pianos, violões, guitarras e arranjos de sopros. O tutor de Sorongo na ioga, professor Hermógenes, recentemente buscou explicar o título do álbum: “Etimologicamente parece que é ananda, felicidade suprema, gerada por Krishna, que é um avatar, a encarnação divina na Terra do mais puro amor”.
 
“É muito interessante como ele trabalha em colaboração, sempre somando”, observa Mauricio Fleury, do Bixiga 70. “É brilhante isso, um artista que, mesmo com tantas ideias, não estava fechado numa bolha. Sua obra vai vir mais e mais à tona conforme os anos forem passando. Vai sempre aparecer coisa que ele gravou, ideia que ele deu, instrumento que ele criou.”
 
A redescoberta de um grande artista carrega sempre a simbologia de novos caminhos que se abrem, novas possibilidades descongeladas do tempo e oferecidas aos novos contextos. No caso de Pedro Santos e seu Krishnanda, mais do que um novo status de cult, o que se oferece são suas ideias e seus sons únicos. Você vai ouvindo e ouvindo e, de repente, as ideias de Sorongo já estão dentro da gente. E nos transformando. (Texto: Revista Trip)



Discografia
 

Krishnanda (1968)
01. Ritual Negro
02. Água Viva
03. Um Só
04. Sem Sombra
05. Savana
06. Advertência
07. Quem Sou Eu?
08. Flor de Lótus
09. Dentro da Selva
10. Desengano da Visita
11. Dual
12. Aranbindu

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